Inquéritos

Um olhar independente

Elis Regina cantou um dia que "o Brazil não conhece o Brasil" numa espécie de grito de alerta contra a pobreza e a marginalidade socio-cultural da esmagadora maioria da sociedade brasileira, em contraste flagrante com o cosmopolitismo das classes favorecidas residentes nas grandes metrópoles.

Aquilo que podemos considerar como sendo a existência de diversos "brasis" em convivência, nem sempre pacífica, num enorme país, originou diversos episódios ao longo da História, o mais sangrento dos quais ficou conhecido por "guerra dos Canudos" e é magnificamente narrado por Euclides da Cunha em "Os Sertões", obra agora reeditada em Portugal pela "Livros do Brasil".

No último capítulo do livro, intitulado "Duas linhas", o autor acaba por resumir toda a barbaridade que testemunhou na pequena cidade sertaneja de Canudos, hoje já desaparecida, cometida tanto por parte dos revoltosos seguidores de António Conselheiro como pelas forças do Exército federal, nos tempos agitados que se seguiram à implantação da República no Brasil. Nessa duas linhas, lamenta: "é que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades".

O livro constitui um relato precioso sobre o Sertão, escrito como se de uma grande reportagem se tratasse, caracterizado por uma laboriosa procura de rigor e de objectividade não apenas quando descreve a geografia física e humana da região mas também quando relata o desenrolar do conflito.

Aliás, como sublinhou Carlos Soulié do Amaral ("O Estado de S. Paulo", 1987), Euclides da Cunha "brilhou pela independência do olhar. Jamais escreveu uma página de ficção. Formado à luz positiva da razão, da sociologia nascente, da análise matemática, foi capaz de entrelaçar ciências puras e humanismo, num enfoque teórico, claro, desprendido do oficialismo imperante e irrigado por extraordinário talento literário".

 

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