Inquéritos

Percursor dos repórteres de guerra

Poucos portugueses terão ouvido falar da chamada "guerra dos Canudos" que em 1897 provocou a morte a cerca de 15 mil pessoas. Mário Vargas Llosa dedicou-lhe um notável livro intitulado "A Guerra do Fim do Mundo", Sérgio Rezende realizou um filme, "A Guerra dos Canudos" (1997), mas nem a literatura nem o cinema contribuíram para tornar conhecido do grande público português aquele que é o maior genocídio ocorrido no Brasil.

Este episódio ímpar na história do país encontra-se contado em detalhe por Euclides da Cunha, também ele praticamente desconhecido do público português apesar de ser indiscutivelmente um dos maiores nomes da literatura lusófona, que, entre Julho e Outubro de 1897, acompanhou para "O Estado de S. Paulo" os acontecimentos mais sangrentos do conflito escrevendo, anos mais tarde, "Os Sertões", um livro justamente considerado como um dos grandes clássicos da literatura brasileira.

Militar, sociólogo, engenheiro, jornalista e escritor, Euclides da Cunha foi aquilo a que podemos chamar de percursor dos repórteres de guerra. Nascido a 20 de Janeiro de 1866 na Fazenda Saudade, em Santa Rita do Rio Negro, ficou órfão de mãe com apenas três anos de idade. "Menino telúrico, discursava, falando sozinho, na porteira do curral, dirigindo-se aos bois", frisa Irene Monteiro Reis ("Bibliografia de Euclides da Cunha", Rio de Janeiro, 1971).

Uma "acentuada natureza introspectiva" iria marcar-lhe toda a infância e adolescência. Aos 18 anos de idade inicia a sua colaboração na imprensa com um artigo publicado no jornal "O Democrata", em cuja fundação havia estado envolvido com mais sete colegas de escola. Escreve poesia composta por "versos de inspiração filosófica, metafísica, cantando a liberdade universal, a tristeza do amor e outros temas das escolas poéticas da época", é expulso da Escola Militar na sequência de um violento protesto frente ao Ministro da Guerra e colabora com o jornal "O Estado de S. Paulo" onde é "muito bem recebido por políticos e jornalistas famosos, que faziam da capital paulista o quartel general das lutas republicanas".

O seu quadro de referências políticas, tal como o de muitos intelectuais da segunda metade do século XIX, é particularmente marcado pela Revolução Francesa. Já jornalista e militante da causa republicana, Euclides da Cunha participaria activamente na "agitação preparatória da queda da monarquia brasileira. E não era só ele; também o Exército, imbuído de positivismo, acreditava ser o garante e o realizador da Revolução Francesa no Brasil", assinala Walnice Nogueira Galvão ("Gatos de outro saco. Ensaios críticos", São Paulo, 1987).

Após a proclamação da República, em 1889, regressa ao Exército e oito anos depois é convidado pelo jornal "O Estado de São Paulo" para reportar o desenrolar da "guerra dos Canudos". Nesse periódico inicia em 1898 a publicação dos primeiros extractos de "Os Sertões". Dado à estampa em 1902, a primeira edição esgotou-se em poucos dias o que demonstra o enorme sucesso alcançado junto da crítica e do público.

No livro, um dos clássicos da literatura brasileira, Euclides da Cunha dá-nos uma interpretação bem mais profunda sobre a "guerra de Canudos", recusando a visão simplista que inicialmente perfilhara de mero confronto entre republicanos e monárquicos para nos transmitir a ideia de um conflito bem mais profundo [e, porque não, ainda hoje premente e pleno de actualidade?] entre o Brasil desenvolvido do litoral e o Brasil pobre e atrasado das regiões do interior.

A este propósito, Gilberto Freire ("Perfil de Euclides e outros perfis", Rio de Janeiro, 1987) sublinha: "admitindo o aspecto vagamente político de Canudos, a verdade é que o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente o da raça - lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação de alguns dos factos da formação social do Brasil que os seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos".

Outro autor, Alfredo Bosi ("Os Sertões, Edição Didáctica", São Paulo, 1982) explica que o contacto de Euclides da Cunha com as condições físicas e morais dos sertanejos "acabou por desmentir o pressuposto de que Canudos era um foco monarquista. Desfeito o equívoco, o escritor pôs-se a examinar com novos olhos aquela sociedade, a um tempo rude e complexa, cuja interpretação ele proporia em "Os Sertões" em termos de mestiçagem e de influência do meio".

Em 1903, é eleito para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em 1907 publica dois livros, "Contrastes e Confrontos", no qual reúne artigos e estudos diversos, e "Peru versus Bolívia", onde estudou os limites geográficos dos dois países, para além de proferir uma conferência, que ficaria célebre, sobre "Castro Alves e Seu Tempo". No ano seguinte, conclui "À Margem da História", um livro de estudos brasileiros.

Encontraria a morte aos 43 anos de idade, na manhã chuvosa do dia 15 de Agosto de 1909, quando, "desafiando o destino e o conquistador de sua esposa" acabaria por ser assassinado nos subúrbios do Rio de Janeiro pelo cadete Dilermando de Assis, com quem se envolveu numa troca de tiros.

Na imprensa brasileira, a morte do escritor foi assinalada com pesar. "Finou-se um grande espírito", escreveu "O Século", recordando o seu empenho em "desvendar as misérias e sofrimentos que tiveram por expoente a campanha de Canudos". A "Folha do Dia" recorda o enorme sucesso alcançado pela publicação de "Os Sertões" onde "à pureza impecável de estilo vigoroso, junta-se o colorido forte da paisagem, a observação profunda do meio, a psicologia superiormente feita dos tipos, o completo estudo geológico da zona descrita".

Em suma, nessa manhã de Agosto "perdeu a literatura nacional [brasileira] o seu génio mais expressivamente brasileiro e telúrico", como muito bem resume Irene Monteiro Reis ("Bibliografia de Euclides da Cunha", Rio de Janeiro, 1971).

 

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