Inquéritos

"A Valsa do Adeus", de Milan Kundera

Por Francisco Alves

Nascido em Brno, na Checoslováquia, em 1929, Milan Kundera fixou residência em Paris em 1975 tendo-se tornado num dos escritores de referência do século XX a quem apenas falta a distinção, que cada vez parece mais inevitável, com o Prémio Nobel da Literatura. Numa das suas obras de referência, "A Valsa do Adeus", editada em Portugal pelas Publicações Dom Quixote, com tradução de Miguel Serras Pereira, Kundera revela mais uma vez todo o seu espantoso talento na interpretação da complexidade e da ambiguidade da existência humana.

A acção desenrola-se numa estância termal de um país do Leste, outrora luxuosa mas agora já em decadência, procurada por mulheres com dificuldade em engravidarem - "são mulheres que não podem ter filhos e esperam que as águas as tornem fecundas" - e por alguns, poucos, homens com problemas cardíacos - "segundo parece, as águas, para além das suas virtudes ginecológicas, fazem igualmente bem ao coração".

E, depois, é a imaginação sem limites e sempre surpreendente de Milan Kundera que faz o resto, envolvendo sete personagens numa espécie de valsa que durante cinco dias as aproxima e afasta, encaminhando-as com um humor notável para desfechos diversos, da morte ao reencontro, da partida à reconciliação.

A narração começa com um telefonema. Um telefonema de Ruzena, uma bela enfermeira da estância balnear, a Klima, um conhecido músico de jazz, que por ali havia passado uma noite e com quem tinha feito amor. O objectivo é anunciar uma gravidez - "Klima lembrava-se que havia estado à espera daquela notícia medonha desde havia muito tempo. Não tinha, na verdade, qualquer motivo razoável para pensar que fecundara Ruzena durante a noite fatal (pelo contrário, tinha até a certeza de estar a ser injustamente acusado), mas andava à espera de uma notícia do género havia anos, desde muito antes de conhecer Ruzena".

Saberemos mais tarde que o filho, muito provavelmente, até seria de um namorado da enfermeira mas que ela decidira atribuir a paternidade ao músico de jazz por acreditar que a existência desse elo lhe poderia proporcionar a abertura de novas perspectivas de vida e que através dela conseguiria sair da estância termal - "Não é por certo agradável vir ao mundo numa cidadezinha por onde passam todos os anos dez mil mulheres, mas onde não aparece praticamente um único homem novo".

Casado, Klima parte para ao encontro de Ruzena com o objectivo de a convencer a fazer um aborto, assumindo a paternidade do feto e dizendo-lhe que qualquer relacionamento não poderia ser solidamente construído com base numa criança indesejada. E aqui temos uma das grandes ironias do livro: numa estância termal destinada a ajudar mulheres a engravidarem, uma jovem e bonita enfermeira procura interromper uma gravidez obtendo autorização da respectiva comissão, fruto da cumplicidade do doutor Skreta, director do serviço de ginecologia das termas.

Aliás, Skreta é uma das personagens mais fascinantes de todo o livro. Prestigiado e reconhecido pelo seu intenso e profícuo trabalho na resolução dos problemas de muitas das mulheres que recorrem à estância termal, acaba por confessar a Jakub, antigo militante comunista e vítima das depurações do regime, também ele médico agora com autorização para trabalhar num país estrangeiro, estar a desenvolver um projecto bizarro através do qual insemina as pacientes com o seu próprio sémen.

"Por este meio já curei não poucas mulheres da esterilidade. Não te esqueças de que, se muitas mulheres não podem ter filhos, isso é unicamente devido ao facto de o marido ser estéril. Tenho uma farta clientela em todo o país e, desde há quatro anos, sou encarregado dos exames ginecológicos no dispensário da cidade. É uma brincadeira aproximar uma seringa de injecções da proveta e inocular em seguida à mulher observada o líquido fecundante".

À imagem de Salomão - "Todos os filhos de Salomão, embora tivessem nascido de sem mães diferentes, eram irmãos" - , também Skreta é pai de uma série de crianças cujo número, contudo, não pode precisar com exactidão pois, como refere, "nem sempre posso estar certo da minha paternidade, porque as minhas doentes me são, por assim dizer, infiéis com os maridos".

Mas Skreta alimenta ainda um sonho: ser adoptado por Bertlef, um paciente com graves problemas cardíacos que vive na estância termal como se de um prisioneiro se tratasse, para desta forma conseguir obter o passaporte americano, viajar livremente por todo o mundo e ir aos mares da Islândia pescar salmão (aqui, Kundera recorre, provavelmente, à sua própria experiência pessoal para nos transmitir uma ideia de desejo de emigração, de partida, de fuga, comum a quase todas as personagens).

A narração termina antes de se consumar a adopção, apenas indiciada, mas cuja concretização não deixaria de ser curiosa: "O que complica um bocado as coisas é o facto de Bertlef só ter mais sete anos do que eu. Terei que lhe explicar que a paternidade adoptiva é uma condição jurídica que nada tem a ver com a paternidade natural e que, teoricamente, ele podia ser meu pai adoptivo mesmo que fosse mais novo do que eu".

Todo o livro é escrito como se fosse um argumento cinematográfico ou uma peça de teatro, através do qual podemos ver um mesmo episódio sobre os olhos de cada um dos intervenientes cuja história nos é contada de um modo individualizado, ora se cruzando ora se afastando das restantes personagens, uma vezes ajudando a explicar um ponto de vista, outros dando-nos uma abordagem inteiramente nova para uma temática já referenciada.

O final acaba por ser dramático tanto para Ruzena, enquanto Klima regressa a casa conduzido por Kamila, a sua bela e ciumenta mulher - "Manejava o volante, sentia-se segura de si mesma e bela, e pensava ainda: seria verdadeiramente o amor que a amarrava a Klima ou tão-só o medo de perdê-lo? E se esse medo era de início a forma ansiosa do amor, com o passar do tempo não teria o amor (fatigado e esgotado) fugido aos poucos dessa forma? E não teria ficado, no fim de tudo, apenas esse medo, o medo sem amor? E o que restaria se o próprio medo desaparecesse?".

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